quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Outra cidade é possível

Resumo: Este texto visa alertar para a urgência de se projetar outra organização da cidade moderna. Da forma como a cidade se estruturou na modernidade se tornou inviável para a convivência humana. Em função de sua opção pelo mercado e pelo consumismo numa sociedade de desiguais, de incluídos-excluídos a cidade morre todos os dias, um pouco como espaço de convivência, de encontro e solidariedade.
Predomina a insegurança, as inúmeras formas de violência e as incontroláveis poluições. Se assim a cidade se estabelece o foi por escolhas históricas; então poderá ser reconstituída por novas opções a partir de novos parâmetros. Quem faz a cidade são as pessoas que aí moram, porém em absoluta desigualdade de condições.
Outra cidade é possível se dermos prioridade à parte de sua população mais frágil: suas crianças e a cidade sendo boa para as crianças o será para todos. Ela será mais bonita, mais segura, mais leve, menos violenta e mais feliz.
Inspirados nas características predominantes da infância e em experiências internacionais de “cidades das crianças”, propomos a reflexão sobre outra cidade possível.

Palavras chave: infância, cidade, educação e políticas públicas.


Uma cidade é constituída por suas casas, prédios, praças e pessoas. Isto todas as cidades têm. Além disto, uma cidade possui outras coisas que a gente não vê, que é o seu jeito de ser, que é sua “alma”. Ela pode ser bonita, colorida, cheia de árvores, muitas floridas, muitas pessoas se encontrando, se ajudando, se abraçando, muitas crianças passeando de mãos dadas com suas mães, brincando com outras crianças, tomando sorvetes (de cinco bolas)... têm casas, que dentro moram outras crianças, que tem janelas abertas e nas janelas existem flores e, à noite, estão iluminadas. As cidades serão para as pessoas passarem, e que às vezes passam também carros e caminhões. Mas as ruas são para as pessoas; se forem para carros somente, elas não terão “alma”.
É difícil chegar a uma definição única dos diversos tipos de cidades que se constituíram historicamente. SPENGLER (2002) elabora uma definição mais ampla e metafórica que acolhe as diferentes espécies de cidade.

“o que distingue a cidade da aldeia não é extensão, não é o tamanho, se não a presença de uma alma cidadã...O verdadeiro milagre é quando nasce a alma de uma cidade. Subitamente, sobre a espiritualidade geral da cultura, destaca-se a alma da cidade, como uma alma coletiva de nova espécie, cujos últimos fundamentos permanecerão para nós um eterno mistério. E uma vez descoberta, forma um corpo visível. A coleção de casas da aldeia, cada uma das quais tem sua própria história, se converte em um conjunto único. E este conjunto vive, respira, cresce, adquire um rosto peculiar e uma forma e história internas. A partir deste momento, além da casa particular, do templo, da catedral e do palácio constitui a imagem urbana em sua unidade objeto de um idioma de formas e de uma história estilística, que acompanha em seu curso todo o ciclo vital de uma cultura”.


Existem, em toda parte, aglomerações humanas, muito consideráveis, que não se constituem cidade. São centros, porem não formam, interiormente, mundos completos. Não têm alma. São agrupamentos, mas não são cidades. São mercados, pontos de interesses mercantis ou financeiros...Onde não se pode dizer que se viva uma vida peculiar e própria. Com a revolução industrial teve origem, certamente, a cidade moderna sem alma, com seu brutal e caótico desenvolvimento, sem lei e sem controle sob o pragmatismo utilitarista. Cidades “desalmadas” construídas e reputadas como símbolo do progresso.
Uma cidade só terá “alma” se garantir a vida plena e digna de todos. E a vida exige também beleza, gratuidade, cultura, solidariedade e bem-querer.
O que compõe uma cidade em contraposição ao rural, é a proximidade: estar junto é melhor. Ou não. Depende para que as gentes querem estar juntos. O que aproxima as pessoas, os objetos e as construções são as relações que existem entre todos – caso contrário, no outro lado da rua pode começar o oceano infinito e a escuridão, a insegurança.
Todas as cidades são iguais? Não, a minha cidade guarda minhas mais belas lembranças e meus sonhos mais lindos. Nenhuma outra é assim... ela esconde um tesouro que é preciso descobrir todos os dias. Contudo, embora esta cidade seja minha, ela é constituída por muitos, por muitas e contraditórias relações.
“Marco Pólo descreve uma ponte, pedra por pedra.
- Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. – A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam.
Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar de pedra? Só o arco me interessa. Pólo responde: - Sem pedras o arco não existe”.

(Ítalo Calvino, 1999)
Ou humanizamos nossa cidade ou ela nos consome, com sua correria, sua violência desalmada, suas incontroláveis poluições, seus medos... A humanização se fará quando os homens e as mulheres, as crianças, os adultos e os idosos começarem a acreditar que o outro, antes que se prove o contrário, é bom, solidário, amigo com quem podemos caminhar de braços dados ou encontrá-lo em qualquer rua e não passar sem abraçá-lo.
A cidade, se todos quiserem, também pode aconchegar pela infra-estrutura: os locais públicos serão seguros, limpos e bonitos – evitar-se-á, de toda forma que alguém corra qualquer tipo de risco; os muros se forem necessários, que sejam para acolher, não para afastar e isolar; que as fábricas e as instituições comerciais e financeiras ajudem a produzir e comercializar bens para uso de todos e seu bem-estar esqueçam o lucro e o progresso a qualquer custo. As escolas serão centros de cultura, os estádios espaços de festa, as igrejas monumentos para celebração da vida, do encontro e da alegria.
Se cada cidadão colocar sua pedra, o arco da ponte fará a ligação entre o sonho da cidade feliz e o cotidiano daqueles que aí vivem.
Ou fazemos uma cidade habitável e humana ou migramos todos para a “cidade virtual”, a “cidade eletrônica”, fechados no castelo da nossa casa, do nosso apartamento, do nosso condomínio dourado. Da nossa solidão transitamos pelas ruas das cidades do mundo e fazemos compras, nos divertindo, participando de todas as novidades da cultura, da arte e de todas as formas de comunicação e informação; mas permaneceremos sós. Da cidade como uma construção histórica para o encontro, voltamos para a era da caverna ilustrada, sim, mas isolada.
O que será uma cidade feliz? A escola e especialmente as crianças poderão nos dizer qual será a cidade ideal:
A cidade deverá ter alamedas verdes,
A cidade dos meus amores,
Quem dera os moradores
... e os pintores e os vendedores,
... as senhoras e os senhores,
... os guardas e os inspetores
fossem somente crianças”.
(Irmãos Grimm – Os músicos de Bremem. Adaptação de Chico Buarque nos Saltimbancos).

Não dá para advogar uma cidade só para crianças. Isto significaria a institucionalização da cidade para a infância, correndo o risco sério de propor a cidade para o “disciplinamento dos corpos e das mentes”. Uma forma de dominação, de inclusão de alguns e de exclusão dos outros.
A “cidade dos homens” é uma invenção histórica voltada exclusivamente para os desejos e as necessidades humanas. Nesta cidade haverá lugar para todos: crianças, homens e mulheres, trabalhadores e artistas, praças, igrejas e fábricas... mas, tendo a função de todos fruirem da vida verdadeira, que valha a pena!
A cidade, nesta ótica, jamais seria uma paisagem inerte, nem mesmo natureza morta, porem um núcleo ativo de intercâmbios e trocas de todas as formas.
Cidades dos homens” (alusão a obra de Santo Agostinho “ A cidade de Deus”) é interpretada como

“... sendo uma instituição social que, como a família, a escola, o Estado, a economia, a propriedade, a ideologia e a utopia são consideradas criações humanas... onde os seres humanos poderão fundar suas instituições e fixar suas leis em busca da liberdade, da solidariedade, da justiça e do bem estar dos indivíduos e da sociedade, transcendendo a realidade empírica alcançada”. (FREITAG, 2002, p.10).

Na linha da evolução humana sobreviveram e se desenvolveram aqueles grupos de animais capazes ou circunstancialmente obrigados a viverem juntos, a serem solidários. Tanto isto é verdade que, por hipótese a espécie humana não é descendente dos dinossauros, mas dos símios: não são os mais fortes que sobreviveram, mas os mais solidários. Assim fizeram seu espaço de existência nos bandos, nos grupos, nas cavernas, nas tabas, nas aldeias... nas cidades. No grupo se estabelecia o encontro, a segurança, as trocas, a sobrevivência. Neste ambiente, assim articulado, pode haver igualdade na diferença, a solidariedade, a proteção coletiva, as parcerias. A cidade como espaço multitudinário, sinuoso e enviesado... ensolarado e ao mesmo tempo carregado de silêncios e incógnitas. O que gera a cidade que ameaça é a sociedade desigual e injusta, excludente e exploradora. Daqui nasce a violência, não da proximidade dos humanos. Houve um tempo em que a cidade dos seres humanos coube às mulheres o papel em função dos cuidados da próle, dos doentes e dos velhos e também do cultivo da terra e da veneração dos mortos (antes da pólis teria surgido a necrópolis?!).
A nova cidade que necessita urgentemente ser reinventada será decorrência de uma nova organização social para além do capital em todas suas formas de exploração. Será equânime, pluriétnica, intercultural, ecumênica. Será solidária, produtora de cidadania e de cidadãos emancipados. Será a moradia dos humanos reencontrados.
Esta reinvenção certamente não será articulada nem pelos homens, nem pelas mulheres. Talvez a articulação de uma nova forma de relações entre os humanos seja daqueles seres que essencialmente necessitam de humanidade: a criança. Uma cidade boa será aquela que respeita nossas crianças.
“... se reconhecermos à criança a competência, se para ela desejamos a autonomia que ela precisa, e se nos convencermos de que a criança pode ser uma grande aliada para a mudança real e radical da cidade na perspectiva de uma cultura da infância a pergunta será: como a criança pode ajudar os adultos?
Esse é o sentido do projeto “A Cidade das Crianças”, esse é o cerne de uma filosofia de governo da cidade: “assumir a criança como parâmetro para garantir a todos os cidadãos a partir dos mais fracos, na certeza de que se uma cidade for adequada às crianças, será uma boa cidade para todos”. ( TONUCCI, 2005 p. 209)

Fazer das escolas e das cidades a casa das crianças é neste início de século XXI um dos grandes desafios, na possibilidade de humanização, revendo o nosso próprio mundo de uma forma mais pacífica e bela. Esse mundo se materializa no cotidiano da cidade.
No dia em que uma criança pegar em teu dedo e sair caminhando contigo, tu jamais te livrarás dela! Ela terá te capturado para sempre e juntos poderemos vislumbrar uma outra cidade possível.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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FREITAG, Barbara. Cidade dos Homens. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda., 2002.
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ZITKOSKI, Jaime José. Uma perspectiva a partir da Cidade Educadora. Informativo da Assoc. dos Docentes da UNISINOS, n. 33, junho de 2004.

2 comentários:

Duplicidade@mor disse...

Que ótima surpresa encontrá-lo no mundo virtual, adorei o texto e fico feliz em saber que agora contamos com mais este espaço de aprendizagens e reflexões. Abraços, Samantha

Unknown disse...

Olá Redin...
Eu sou a Jaqueline de Viçosa que conversei com você mês passado, gostaria de agradecer pelo livro.. adorei, gostei muito , confesso que achei que você iria esquecer...
Nossa fiquei muito feliz.
O meu email é jack.medina3@yahoo.com.br

quando você vir para Viçosa me avisa...
Foi muito gratificante para mim conversar com você. Espero ter outras oportunidades.

Jaqueline Medina
(UFV)